Parentalidade
Entrevista: E se contássemos versões mais cruas dos contos de fadas?
A educadora de infância Paula Moura aborda, nesta entrevista, a importância dos contos de fadas no processo de amadurecimento das crianças, salientando a relevância de eleger as versões originais, mais cruas, em detrimento das versões mais cor-de-rosa e politicamente corretas divulgadas nos nossos dias.
Os contos de fadas são um dos maiores veículos de ajuda na gestão de conflitos internos das crianças. As histórias ensinam-nos coisas valiosas. A realidade tem pessoas ou criaturas boas e más. Não podemos confiar em todas, mas podemos acreditar em algumas. A preguiça não compensa, pois os porquinhos preguiçosos, na história original, foram mesmo comidos pelo lobo mau. Usarmos a cabeça e sermos inteligentes pode trazer-nos muitos benefícios, pelo que não vamos ficar à espera de ser salvos, como na história de Hansel e Gretel. Aprendemos que os outros não estão ao nosso serviço: a vida é uma troca. Por vezes, os nossos esforços são recompensados, outras vezes não... mas não é por isso que desistimos.
A vida, por vezes, confronta-nos com caminhos difíceis e, se quisermos, podemos escolher os mais fáceis, mas se o fizermos, provavelmente não chegamos onde desejamos. A mudança dói, custa e, às vezes, nem compensa, mas não podemos saber se não arriscarmos, como na história da Pequena Sereia. Os monstros, as bruxas e os ogres – que representam o mal − podem ser vencidos e esta é das lições mais importantes da vida! Há uma frase de que gosto muito, de um autor americano chamado Chesterton, que diz o seguinte: "Os contos de fadas não dizem às crianças que os dragões existem: elas já sabem que os dragões existem. Os contos de fadas dizem às crianças que os dragões podem ser vencidos.”
Antigamente, não existia um reconhecimento da infância como um período importante e distinto da idade adulta e, nesse contexto, as histórias eram contadas aos adultos e também ouvidas pelas crianças. Os primeiros contos infantis foram transmitidos oralmente, até haver os primeiros registos dessas histórias, realizados pelos irmãos Grimm, Perrault e Andersen. Claro que não foram registados exatamente como foram ouvidos, pois já sabemos que quem conta um conto, acrescenta um ponto! Estes recolectores de histórias viveram em tempos diferentes, ao longo dos quais a visão da infância se foi alterando, fazendo com que os contos se fossem tornando cada vez mais benignos e “cor-de-rosa”. Mas ninguém os dourou tanto quanto a Disney… e é a essa versão à qual a maioria das crianças tem acesso hoje em dia.
Muitas histórias foram-se alterando bastante, como a da Pequena Sereia que, na versão original, tinha dores horríveis sempre que andava, mas era percecionada pelos habitantes da terra como harmoniosa. No fim, esta história não acabou bem: a Pequena Sereia morreu, a sua voz ficou na posse da bruxa e o príncipe nunca foi seu. Mas este era o seu sonho e, se quisermos seguir os nossos sonhos, sabemos que existe sempre o risco de não correr tudo bem.
Os contos falam dos sentimentos e das fraquezas humanas, da bondade e da maldade, da inveja e da vaidade, que todos sentimos, de uma forma mais ou menos profunda, ao longo da nossa vida. Permitir às crianças um contacto com esta humanidade, de uma forma mais crua, dá-lhes a oportunidade de se identificarem, de se reverem, de vencerem os seus próprios demónios – aqueles que não confidenciamos a ninguém, mas que vivem em nós, aqueles que às vezes nem nós sabemos que temos cá dentro.
Os contos de fadas são de uma riqueza e de uma complexidade que não se fica pelo que é facilmente observado à superfície. Cada conto traz perspetivas diferentes, algumas fazem menos sentido nos dias de hoje, outras parecem intemporais, porque abordam aquilo que há de constante na humanidade. Outro dos motivos desta complexidade é o facto de as histórias apelarem ao nosso imaginário de uma forma tão primitiva, tão primária, que pode ser aquilo que precisamos de ouvir naquele momento. Quando ouvem os contos, uma criança espelhará uma realidade e outra uma realidade completamente diferente − assim, qualquer história pode ser exatamente aquilo que determinada criança precisa de ouvir, num determinado momento.


Bloco de notas
Os contos de fadas são…
… aquela narrativa que se encaixa entre o “Era uma vez” e o “viveram felizes para sempre”. Eram bem diferentes do que hoje conhecemos, um legado oral que terá tido origem Celta e, efetivamente, algumas personagens fazem já pouco sentido por se terem alterado de forma tão significativa. As próprias fadas não têm nenhuma relação com aquelas que povoam o nosso imaginário hoje em dia. No geral, são histórias não reais, do domínio da fantasia, com criaturas místicas e que não existem, mas de alguma forma conseguimos estabelecer o seu paralelo com o mundo real. Este domínio da fantasia faz com que cada um possa tirar as suas conclusões, de acordo com a sua experiência e aquilo que precisa de aprender sobre o mundo.